Anime é coisa de criança ???
- Mundo Otaku
- 26 de nov. de 2015
- 8 min de leitura

É uma concepção praticamente enraizada no senso comum: desenhos animados e histórias em quadrinhos são para crianças. E, efetivamente, esta não é uma noção sem embasamento. Durante a maior parte da nossa história recente, estas duas grandes indústrias, a dos desenhos animados e a dos quadrinhos, de fato sempre se classificaram e se venderam como sendo voltadas para crianças. Em fato, os quadrinhos tem uma história interessante nesse quesito:
já na década de 1950 os Estados Unidos viram surgir, entre as grandes editoras de quadrinhos, um “comum acordo” de que quadrinhos deveriam ser para crianças e, portanto, produzidos e vendidos como tal (o que levou ao ostracismo muitos artistas que desejassem fazer quadrinhos de teor mais adulto, inclusive). No Brasil, uma medida similar foi implementada pelo Regime Militar já na segunda metade da década de 1960, com os quadrinhos passando então a sofrerem da censura que imperava na época.
O quanto e o que foi efetivamente censurado eu pessoalmente não tenho como dizer, mas é certo que tal medida contribuiu e muito para o ar mais “infantil” que as histórias em quadrinhos ganharam no país.
O Japão, porém, foi o completo oposto disso. Apesar de também sofrer momentos de forte censura, os artistas japoneses sempre foram bem mais “livres” para criar obras voltadas para todos os públicos, incluindo ai obras de teor adulto. Quando algumas das obras japonesas começaram a deixar o Japão, o choque cultural que isto causou não foi pouco. Muitas das exposições de quadrinhos japoneses que foram exibidas pelo mundo, bem como muito do que foi escrito e publicado ao seu respeito, foi, inicialmente, propositalmente sensacionalista. A imagem que surgia do povo japonês era dupla, de adultos infantilizados que seguiam lendo quadrinhos mesmo já com 30 ou 40 anos, mas, ao mesmo tempo, de completos pervertidos, com os mencionados quadrinhos sendo praticamente pornografia pura (algo completamente longe da realidade japonesa, é válido colocar). Não é de estranhar, portanto, que quando o anime e o mangá chegaram no ocidente em peso houve críticas dos dois lados.
Eu vou chutar aqui e dizer que muitos otakus ou ouviram ou conhecem alguém que ouviu duas críticas bastante distintas ao seus gostos por anime e mangá. A primeira delas, normalmente vinda de pessoas próximas às suas idades, como outras crianças ou adolescentes, a de que anime e mangá eram coisa de criança. A segundo, por sua vez provavelmente vinda de algum adulto ou figura mais velha, a de que estas animações e quadrinhos eram recheadas de violência e não deveriam ser mostradas ou vendidas às crianças.
Duas críticas radicalmente diferentes, mas que demonstram o choque cultural causado pelo encontro de duas concepções bastante diferentes do que são os desenhos e os quadrinhos: a ocidental, mais restrita, e a oriental, mais ampla. Eu digo isso para tentar relativizar, ainda que só um pouco, a noção de que anime e mangá sempre foram vistos como para crianças. Não, pelo contrário: chegaram mesmo a haver críticas de que era o completo oposto e de que estas obras não deveriam ser acessíveis às crianças. Apesar dessas críticas, porém, estas obras foram, sim, vendidas e anunciadas como para crianças, não vou negar isso.
Para além disso, é muito mais provável que uma criança ou adolescente veja seus gostos influenciados pelos de outras crianças e adolescentes do que pelos de seus pais. A opinião dos colegas de sala pode ter alta influência em uma criança ou adolescente, de forma que o estigma do anime e mangá como obras para crianças foi ganhando força entre os jovens.
Atualmente, os otakus em geral adotam uma postura bastante defensiva para com esta noção. É quase axiomático, nesse meio, que anime e mangá não são para crianças. E, de fato, há grande verdade nisso. Como eu disse, o Japão deixou os artistas bem mais “livres” para criar suas histórias, de formas que muitas delas tem conteúdos bastante impróprios para menores. Ignorando aqui a industria pornográfica japonesa, que muito se alimenta de obras em anime ou mangá, muitas histórias possuem uma complexidade ou profundidade crítica que a maioria das crianças não compreenderia.
Isso sem citar as obras com violência explícita. Se alguém ainda duvidasse, bastaria perder cinco minutos em qualquer banca de jornal, olhando com atenção os mangás que há nela: muitos deles estão com avisos de indicados para maiores de 14, 16 ou mesmo 18 anos. Quando estamos falando em anime ou mangá estamos falando em mídias que são muito mais próximas do cinema ou da televisão: contém obras para todos os públicos. O problema é que a posição dos otakus talvez seja defensiva até demais.
Ok, eu vou ser bastante direto: eu não pretendo fazer, aqui, uma longa defesa de como os animes e mangás são obras para adultos ou coisa do gênero. Já existe muito material do tipo na internet e, honestamente, qualquer eventual interessado no assunto que faça como eu disse e pare dez minutos em uma banca de jornais provavelmente verá que a concepção de que estas são obras apenas para crianças é errada. Não, o que eu quero apontar é justamente o oposto. Que, apesar de anime e mangá não serem obras somente para crianças, eles ainda são obras também para crianças. Para cada Elfen Lied existe um Mirmo Zibang. Para cada Neo Genesis Evangelion existe um Hamtaro. A lista continua indefinidamente. E isto é algo que especialmente a comunidade otaku deveria aprender a reconhecer.
Chega a ser surpreendente a defesa que algumas pessoas fazem de suas obras favoritas. Falar que um Dragonball Z ou um Cavaleiros do Zodiaco foram obras criadas e vendidas para o público infantil e adolescente (digamos, de uns 10 aos 15 anos) é o suficiente para iniciar a terceira guerra mundial em algum grupo ou página do facebook. Dizer que algo é “para crianças”, hoje, é considerado uma ofensa grave. E, na minha opinião, isso é no mínimo problemático.
Para começo de conversa, o que eu vejo nesse tipo de argumento (o de que “meu anime/mangá favorito é para adultos, não é coisa de criança” e similares) é um completo desprezo justamente das obras voltadas para crianças. As pessoas, por algum motivo, parecem ter como pré-concebida a noção de que tudo aquilo que é para crianças é ruim, ou, pelo menos, inferior ao que é destinado a adultos. Para começar, isso não é verdade, e as mega produções da Disney ou da Pixar estão ai para provar, exemplo mais recente sendo o filme Fronzen, visto (e adorado!) por pessoas de todas as idades. Mas o maior problema, a meu ver, é que esse tipo de atitude dá carta branca aos produtores desse tipo de obra para criarem as maiores porcarias. A partir do momento que você concorda que obras infantis não tem qualidade, abre-se a porta para a noção de que elas não precisam ter. Qualquer coisa é válida, desde que não ultrapasse os limites morais do termo “para crianças”.
O resultado disso seria uma carga cada vez maior de desenhos animados e histórias em quadrinhos completamente irresponsáveis para com a sua própria função social: a de educar, ensinar e entreter crianças. Agora, eu não estou dizendo que isto aconteceu ou está acontecendo, estou apenas levantando uma hipótese daquilo que este tipo de comportamento “descompromissado” para com as produções infantis pode vir a causar.
Para além disso, é curioso o quão paradoxal a imagem da infância parece ser. Por um lado, a sociedade louva este período como um momento “de ouro” na vida de alguém, um momento que precede as preocupações e estresses da vida adulta, um estágio quase utópico de vida perfeita (como se crianças fossem incapazes de sentir preocupação ou estresse, vejam bem). Por outro lado, absolutamente tudo que recebe o estigma de “para crianças” é visto como negativo e indesejado. O resultado disso? Bom, já repararam o quanto as crianças costumam dizer que querem crescer logo? Veja bem, como qualquer ser humano, a criança busca se comunicar. Ela busca atenção de outras pessoas e busca “socializar” com outros.
Porém, ao mesmo tempo a criança é constantemente lembrada de que sua opinião não tem valor, ao menos no meio adulto. Fala-se muito sobre a criança respeitar aos mais velhos, mas muito pouco sobre os mais velhos respeitarem as crianças (e eu não digo isso aqui em tom de crítica, é apenas uma observação). Obviamente, porém, a opinião dos adultos, ou pelo menos a imagem de respeito que estes passam, continua tendo algum efeito nas crianças. O resultado disso é a criança procurar se aproximar daquilo que é o adulto, tanto para ser reconhecida como igual entre os adultos como para ganhar algum status relevante em seu próprio grupo de crianças. Um dos resultados disto é justamente a estigmatização da criança como um ser “inferior” e dos produtos voltados para crianças como produtos “inferiores”.
Finalmente, isso é problemático também para as obras que ficam “no meio”, como o são muitos animes ou mangás. Obras voltadas para adolescentes, seja um Dragonball, seja um Rebeldes, podem sofrer ataques dos dois lados, ora tachados como “impróprio” para as crianças e hora categorizados como “infantis”, o que por si só apenas serve para confundir aos próprios adolescentes, justamente aqueles que mais se preocupam em se afirmar como “não mais crianças”. Além disso, passa a ideia errada de que uma obra deve conter, por exemplo, cenas fortes de violência exacerbada para poder ser considerada como “para adultos”. Basta olhar os comentários daqueles que defendem que anime e mangá não são coisa para crianças, onde a primeira coisa que se aponta é a quantia de sangue ou de mortes que esta ou aquela obra em particular tem (o já citado Elfen Lied é um bom exemplo disso). E isto, por sua vez, muitas vezes leva à supervalorização entre os mais jovens de obras que não tem absolutamente mais nada a oferecer além de violência gratuita. Ou, ainda pior, à valorização de obras por seus aspectos de violência, mesmo quando esta tem, de fato, algo mais a oferecer.
O que eu quero dizer aqui é: em primeiro lugar, animes e mangás não são somente para crianças. Como praticamente toda e qualquer mídia, eles possuem obras para todas as idades, desde crianças, passando por jovens, até adultos. Mas acima de tudo, o que eu quero apontar é que não existe nada de intrinsecamente errado em algo ser para crianças.
Ou, mesmo, que não existe nada de errado em algo ser apreciado também por crianças. Existe uma diferença gritante entre explicar que esta ou aquela obra em especifico não é indicada para, digamos, menores de 14 anos, e sedefender da acusação de que esta ou aquela obra é para crianças. Não há do que se defender. Obras voltadas para crianças não são em nada inferiores ou piores do que aquelas voltadas para outras faixas etárias e nem deveriam ser. Não por menos justamente muitas destas obras recebem o carimbo de obras “para toda a família” ou de classificação indicativa “livre”, indicando que são recomendadas justamente para todas as idades, adolescentes e adultos inclusos.
Os filmes da Marvel e da DC estão ai para provar isso. As mega produções da Disney e da Pixar estão ai para provar isso. Então, da próxima vez que você for afirmar que algo “não é para crianças”, tenha certeza de que você está apenas fazendo uma constatação, e não se defendendo de uma acusação movida por um preconceito que você mesmo talvez compartilhe. E, acima de tudo, não veja ou leia algo só por ser “para adultos”, nem deixe de ver ou ler algo só por ser “para crianças”: veja e leia aquilo que tiver interesse. Arte é sobretudo sobre emoção. E se uma obra te passa a emoção que você quer ou precisa sentir naquele momento, não há nada de errado com ela, seja a classificação indicativa que for.
Ah, sim, e só uma nota final direcionada a qualquer eventual criança ou adolescente que possa chegar a ler isso: a classificação indicativa existe sobretudo para a proteção de vocês. Não é porque uma obra tem uma tarja de “+16” ou “+18” que ela é melhor do que qualquer outra de categoria “Livre”. Em fato, muitas vezes pode ser bem o contrário e alguém que se aventure por obras desse tipo pode acabar tendo surpresas bastante desagradáveis. Então… É, sejam conscientes com as coisas às quais se deixam expor.

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